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12/05/2025

Crimes de Maio: 19 anos depois, mães e entidades lutam para que o morticínio não prescreva 5vr6r

Para especialistas, é inaceitável que, com mais de 500 mortos e um contexto carregado de violações, o Estado ainda não tenha dado uma resposta consistente 2d1j41

Mães de maio em evento na Faculdade de Direito da USP. Foto: Gabriel Guerra/ Conectas Mães de maio em evento na Faculdade de Direito da USP. Foto: Gabriel Guerra/ Conectas

Em 15 de maio de 2006, Vera Lúcia Gonzaga perdeu, de uma só vez, sua filha Ana Paula — que estava grávida de nove meses de Bianca — e seu genro, Eddie Joey. Eles foram apenas três entre os mais de 500 mortos no trágico episódio que ficou conhecido como Crimes de Maio. Por quase 12 anos, Verinha, como era chamada pelas companheiras, carregou consigo a dor dessas perdas enquanto lutava por justiça. Tornou-se uma das vozes mais firmes do movimento Mães de Maio, denunciando a violência do Estado ao lado de outras mulheres que transformaram o luto em militância. 1la73

Em 3 de maio de 2018, Verinha foi encontrada morta em sua casa, na periferia de Santos, no litoral paulista. Embora não tenha sido assassinada naquela semana de 2006, sua morte carrega o peso de uma violência contínua. Ela também foi vítima dos Crimes de Maio — não pelas balas, mas pelo abandono, pela criminalização e pelo silêncio também perpetrado pelo Estado.

Os Crimes de Maio começaram em 12 de maio de 2006, após rebeliões em unidades prisionais paulistas e ataques a agentes públicos, seguidas por uma “onda de resposta” de policiais e grupos de extermínio ligados ao Estado, resultando em mais de 500 mortos.

É comum até hoje que parte da imprensa se refira ao caso dando destaque aos ataques iniciais de grupos armados, que interditaram a cidade de São Paulo. Mas o que parece ser uma narrativa consolidada esconde uma verdade mais complexa. Referir-se ao episódio dando ênfase ou reduzindo-o aos ataques daqueles grupos, visa ocultar os crimes praticados pelas forças policiais e revela uma escolha ideológica, como apontou a pesquisadora Francilene Gomes Fernandes — mais uma familiar e vítima dos Crimes de Maio. 

“O ocorrido em plena fase dita ‘democrática’ é uma das maiores violações de direitos humanos de nossa história recente. As mães das vítimas, seus familiares e amigos têm transformado essa dor em luta, mesmo representando sofrimento, revolta e saudades para todas as mulheres-mães afetadas brutalmente desde então”, escreveu Francilene Gomes Fernandes no livro Tecendo resistências: trincheiras contra a violência policial (Editora Cortez), lançado em 2024, mesmo ano em que a pesquisadora faleceu, ainda lutando por justiça, memória e reparação. 

Francilene era irmã de Paulo Alexandre Gomes, vítima de desaparecimento forçado durante os Crimes de Maio.

“Esse episódio foi um divisor de águas na vida das famílias que tiveram pessoas queridas arrancadas abruptamente de suas vidas. Para se manter lúcidas, foram obrigadas a se construir como mulheres militantes na luta pela verdade e justiça, culminando num longo, árduo e pesado caminho percorrido em várias instituições dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, instituições participantes da engrenagem da violência do Estado”, relatou. 

As mães que não deixaram esquecer 143c34

Foi nesse contexto, há 19 anos, que nasceu o Movimento Mães de Maio, formado inicialmente por Verinha, Ednalva Santos, Vera de Freitas e Débora Maria da Silva. Quatro mães que perderam seus filhos nas mãos do Estado e que, em vez de se calarem diante da dor, ocuparam ruas, universidades, tribunais e organismos internacionais.

Débora, uma das vozes mais atuantes do movimento, achava que seu filho, Edson Rogério, estava a caminho do trabalho na manhã de 13 de maio de 2006. Ele era gari, pai de um menino de três anos, e tinha ido abastecer a moto, quando foi abordado por um policial. Minutos após ser liberado, foi assassinado com um tiro no coração e outro em cada pulmão. O corpo só teve parte da verdade revelada seis anos depois, quando ela conseguiu a exumação, e um novo projétil foi encontrado cravado na coluna cervical. 

Até hoje, o exame balístico que poderia apontar a autoria dos disparos nunca foi concluído.

Ao longo destes 19 anos, o movimento se consolidou como referência nacional e internacional. Construiu pontes com familiares de vítimas no México — no episódio do desaparecimento de 43 estudantes de Ayotzinapa em 2014 —, nos EUA, através do Black Lives Matter; no Chile, com o povo Mapuche; e em diversos estados brasileiros. Participou da I do Senado sobre o assassinato de jovens no Brasil e publicou cinco livros com relatos das vítimas.

O ano de 2017 foi um marco para o movimento, que fincou os pés no meio acadêmico, mostrando que as mães também são capazes de produzir conhecimento sobre elas mesmas. Um estudo realizado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf-Unifesp), em parceria com o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Oxford, contou com a participação de Débora Silva. 

A pesquisa concluiu que as mortes ocorridas em maio de 2006 foram, em sua maioria, execuções sumárias. Dois fatores principais sustentam essa conclusão: o elevado número de disparos por vítima e o fato de estarem concentrados em regiões de alta letalidade, como cabeça e tórax. A média foi de 4,48 perfurações por vítima fatal, número superior ao observado em confrontos armados legítimos com suspeita de execução.

Em 2020, as Mães de Maio protocolaram um projeto de lei na Câmara de São Paulo (PL 734/2020), elaborado com apoio dos advogados voluntários Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas; Silvia Souza, coordenadora adjunta do departamento antidiscriminatório do IBCCRIM; e Giordano Magri, assessor do vereador Eduardo Suplicy. O PL propõe e institucional, proteção social e assistência médica a familiares de vítimas da violência estatal. O projeto foi apresentado em 2022 na Câmara dos Deputados pelo deputado federal Orlando Silva. 

Em 2021, com o apoio da Conectas e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o movimento apresentou uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o Estado brasileiro, cobrando a responsabilização por execuções e desaparecimentos forçados ocorridos na Baixada Santista em maio de 2006 e em 2021. A petição teve como base a tese de doutorado de Francilene Gomes. Até o momento, no entanto, a Comissão não se manifestou sobre o caso.

Chacina do Parque Bristol  3v34

Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a federalização das investigações sobre a chacina do Parque Bristol, ocorrida na cidade de São Paulo como um dos desdobramentos dos Crimes de Maio de 2006. O pedido havia sido apresentado pela Procuradoria-Geral da República em 2016, em resposta à representação feita pelos familiares das vítimas e pela Conectas em 2009. 

No mesmo ano de 2009, a Conectas também denunciou o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), representando os familiares das vítimas do Parque Bristol. Após 19 anos de tramitação, o caso foi finalmente encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com recomendação de condenação do Estado brasileiro. Entre as medidas solicitadas estão garantias de não repetição, reparação integral às vítimas, assistência à saúde física e mental dos familiares e sobreviventes, e a reabertura das investigações.

Em 2024, com apoio da Conectas e do CAAF-Unifesp, as Mães de Maio lançaram o projeto “Fortalecendo o alcance e o impacto dos movimentos de direitos humanos no Brasil”, voltado à formação de 100 mães e familiares de vítimas da violência estatal em estratégias de atuação, investigação forense e advocacy. A iniciativa inclui ainda a criação de um arquivo com a memória dos movimentos de resistência, capacitação audiovisual para 12 familiares e o lançamento de uma plataforma online colaborativa para divulgar e preservar esse acervo.

É uma caminhada de resistência contra um Estado que mata jovens negros e pobres a cada minuto, como lembrou Débora Silva, no evento de lançamento do projeto com a Conectas e a Unifesp. “Nós, como mães, não podemos naturalizar a morte dos nossos filhos. Por isso, seguimos juntas, caminhando e construindo conhecimento ao lado da ciência. O adoecimento das mães trazido pelo luto é visível. Mas, com esses projetos, conseguimos devolver a autoestima e a dignidade”, defende Débora.  

Luta por justiça e memória 1n2c4x

ados 19 anos, nenhuma responsabilização significativa ocorreu. Segundo o advogado Gabriel Sampaio, diretor da Conectas, os crimes deveriam ser considerados imprescritíveis, dada sua gravidade. “Mesmo que não fossem, é inaceitável que, com mais de 500 mortos e um contexto carregado de violações, o Estado brasileiro ainda não tenha dado uma resposta consistente”, afirma. Para ele, a ausência de apuração enfraquece a democracia e aprofunda o sofrimento de mães e familiares que permanecem desamparados.

Esta é uma das discussões postas em uma ação proposta pelo Ministério Público Estadual que trata das omissões do Estado nos Crimes de Maio. Essa ação se baseia nos princípios da justiça de transição e demanda o reconhecimento das violações de direitos humanos praticadas pelo estado, medidas de não repetição e a reparação material e simbólica das vítimas. A ação foi negada na primeira instância paulista, mas, em sede de recurso, ganhou um voto favorável do relator no STJ. A expectativa é que o julgamento avance em 2025.

Como escreveu Francilene Gomes, os elementos da maternidade e da perda são centrais para compreender a formação de movimentos como o das Mães de Maio. Ao longo desses 19 anos, ao insistir na importância da memória e da denúncia da violência sofrida, essas mulheres não apenas resistiram, mas também produziram e eternizaram inúmeros frutos dessa luta.

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